
Jia Xing tem olhos tristes. Ama bambu, passa metade do dia mastigando um pedaço. Na outra metade, dorme. Ainda assim, acorda sempre com olheiras negras profundas, como aquelas de quem se esquece de tirar o rímel antes de deitar. Mas Xing não usa rímel. Também não gosta de sexo, seja para procriação ou recreação. Nem de qualquer outro tipo de movimentação. Tem mais de cem quilos, distribuídos por cerca de 1,5 metro, e vive entediada. É impossível resistir ao seu charme. Xing é um dos mais de cem pandas-gigantes que vivem em uma reserva florestal perto de Chengdu, cidade em um planalto cercado de montanhas no meio-oeste da China, capital da província de Sichuan. Há apenas cerca de 1.600 pandas-gigantes no mundo, incluindo os que vivem em cativeiro. Boa parte deles está em Sichuan, que concentra a maioria das reservas naturais chinesa.

Ver de perto Xing e seus amigos ursos igualmente adoráveis, praticamente no seu habitat natural, já seria razão o suficiente para incluir o destino em um roteiro asiático. Mas Chengdu guarda outras surpresas além de pandas-gigantes — e também pandas-vermelhos, bem menores. A cidade é a quarta maior metrópole da China continental, com 14 milhões de habitantes. Arranha-céus com fachadas espelhadas, hotéis de luxo e lojas de grife surgiram por toda a parte nos últimos anos (assim como a poluição do ar), mas há também dois centros históricos encantadores, muito bem preservados e repletos de obras de arte pelas ruas.
Detalhes nas fachadas antigas da cidade
O mantra turístico de Chengdu é “Estou aqui por causa dos pandas-gigantes”. O desejo de ver os animais na Natureza se resolve em um dia. Mas a cidade é longe para quem sai do Brasil. Aliás, não é muito perto nem de outros lugares na China, e o jet lag vai impor um ritmo mais lento. Então, antes ou depois de babar por pandas-gigantes imersos em bambuzais, reserve pelo menos mais uns dois ou três dias para aproveitar Chengdu, que oferece tantas atrações, confortos e sabores como qualquer outra metrópole asiática. A cidade é destino para o ano inteiro. Os invernos não são muito frios (raramente neva) nem os verões tão quentes quanto os de Pequim. Chove o ano todo, mais ainda em julho e agosto. As ruas são limpas, mas a poluição do ar é um problema, como em outras grandes cidades chinesas, e céu azul é raríssimo, principalmente no inverno.
Arte nas paredes do centro histórico
Com o boom turístico, já são vários os hotéis de luxo, de redes como Ritz-Carlton, Shangri-la e St.Regis, e seus respectivos bares, restaurantes e spas abertos também a não-hóspedes. Companhias aéreas de todo o mundo começaram a incluir Chengdu em suas rotas — a Qatar Airways inaugurou no fim de 2013 um novo voo a partir de Doha; a United começou a voar em junho de 2014 a partir de São Francisco. A indústria de TI é o principal negócio local — a cidade tem escritórios de grandes empresas como IBM, Dell e Intel.
Pelas ruas históricas de Chengdu
É fácil se locomover de táxi, desde que tenha os endereços escritos em mandarim ou no dialeto local (qualquer hotel providencia os cartões). Há pontos de táxi nas principais áreas turísticas, e as corridas não custam caro. Não sei se foi sorte, mas todos os motoristas que peguei eram educados e gentis, ainda que não falassem inglês.
Não deixe de visitar um templo ou monastério e de se aventurar pelas duas principais áreas históricas da cidade. Uma fica no lugar do antigo mercado, Jinli, com registros que remontam ao início do século III; a outra foi uma zona residencial, ocupada desde a dinastia Qinq (a última dinastia imperial, a partir do final do século XVII). Nesta, com ruas de pedestres chamadas em inglês de Narrow & Wide Alleys (na realidade, são três ruas paralelas, Kuan, Zhai e Jing), praticamente todas as casas foram restauradas há dez anos ou menos.
Hoje abrigam galerias de arte, lojas, bares, casas de chá, restaurantes e boates, todas esbanjando charme, muitas decoradas com lanternas vermelhas, algumas em formato de flor de lótus, e também obras de arte nas paredes externas, nas quais esculturas como cavalos e bicicletas “saltam” dos tijolos centenários. Até o Starbucks local é diferente dos muitos que se vê por aí. O bairro é um lugar perfeito para observar o vaivém do povo.

Há imensa variedade de barraquinhas de comida de rua. Tudo aparentemente limpo. Ainda assim, o frio na barriga é o mesmo que se sente em qualquer lugar onde ninguém fala inglês: você pede aquele bolinho que todo mundo está fazendo fila para comprar, achando que é algo salgado, e descobre que é uma levíssima massa de sonho açucarada. Diversão garantida. Para quem não se anima a comer sem saber o quê, do outro lado da rua há uma sorveteria italiana. Mais adiante, encontra-se caldo de cana e morangos. Em alguns restaurantes, há cardápios em inglês. E em toda a região o Wi-Fi é bom e gratuito.
Mas o maior desafio da cozinha da província de Sichuan não é o idioma, e sim a pimenta. Vá com calma, mesmo se você é daqueles, como eu, que acha que gosta de sabores picantes. Peça tudo com pouca pimenta, e ainda assim esteja preparado para muita. A culinária local é deliciosa, mistura carne de boi, porco e muitos vegetais, e a gente vai em frente mesmo ardendo. O prato típico principal é chamado em inglês de Sichuan hot pot, uma tradição milenar. No centro da mesa ficam potes com uma espécie de sopa, com ou sem pimenta. São servidos queijo de soja, vegetais, flor de lótus, pepino, carne de boi, e você vai cozinhando cada um. Para beber, a maioria pede a cerveja chinesa Tsingtao, mas há também marcas importadas, vinhos e refrigerantes.
Os dois centros históricos têm boa oferta de restaurantes de pratos típicos. Em um deles, o Dai Miu, em Jinli, na área do antigo mercado, o jantar é acompanhado de uma apresentação da ópera de Sichuan, originária do século XVIII. Diferentemente da ópera de Pequim, a de Sichuan é mais animada, com os mesmos atores interpretando vários personagens, trocando de máscaras, brandindo espadas e cuspindo fogo. A noite com ópera e jantar, cerveja à parte, custa em torno de R$ 150 por pessoa (o preço cai pela metade em outros restaurantes igualmente turísticos, mas sem o espetáculo teatral). Vale a pena chegar cedo a Jinli para dar uma volta pelo local e apreciar a linda árvore dos desejos.

(Versão atualizada de texto originalmente publicado na revista Boa Viagem, do jornal O Globo.)